Há 50 anos, os húngaros se rebelaram contra os soviéticos e foram esmagados pelos tanques de Moscou. Conheça a revolta que rachou o comunismo mundial 33 anos antes da queda do muro de Berlim
Em 1989, quando o mundo assistiu pela TV à derrocada do comunismo no Leste Europeu, pouca gente se deu conta de que as manifestações contra o modelo soviético na região haviam começado a ser desenhadas num pequeno país do bloco, pouco mais de três décadas antes. O livro Hungria 1956 ...E o Muro Começa a Cair, de vários autores, narra como, há 50 anos, estudantes húngaros saíram às ruas de Budapeste para protestar contra a ditadura imposta pelos soviéticos na região. Em outubro e novembro de 1956, 200 mil pessoas se reuniram na maior demonstração de insatisfação de um país comunista diante da poderosa União Soviética. Mas o sonho de autonomia húngara iria durar apenas alguns dias. Na madrugada de 4 de novembro daquele ano, os manifestantes se viram impotentes diante da chegada dos tanques russos a Budapeste. Comunistas do mundo inteiro, que costumavam bradar contra o imperialismo americano, descobriram atônitos a face brutal de outro imperialismo: o soviético.
Para os húngaros, a chegada dos russos era apenas mais um capítulo da história de um país subjugado por invasores há séculos. Desde que Estêvão I estabeleceu o reino da Hungria, no ano 1000, o território fora dominado por mongóis e turcos otomanos e, mais tarde, pelos Habsburgos, da Áustria, quando integrou o chamado Império Austro-Húngaro. Derrotados e separados dos austríacos na Primeira Guerra, os húngaros foram obrigados, em 1920, a doar dois terços de seu território aos vizinhos. Depois de um malfadado ensaio de revolução comunista, o país terminou se aliando à Alemanha na Segunda Guerra na esperança de recuperar os territórios perdidos. Derrotados mais uma vez, a União Soviética logo fez questão de colocar o país em sua zona de influência, assim como fez com os outros países do Leste Europeu no pós-guerra.
No início, tudo parecia normal no país: a Hungria continuava permitindo o multipartidarismo e o Partido Comunista Húngaro mantinha apenas o controle do Ministério do Interior, o que significava, na prática, o controle do aparelho policial. Mas, a partir de 1947, as coisas esquentaram entre Estados Unidos e União Soviética e a Guerra Fria levou os comunistas a mudarem de postura: dali em diante, todos os países do leste teriam que rezar pela cartilha de Moscou.
Para comandar a Hungria, os soviéticos escalaram comunistas húngaros que haviam morado em Moscou. Entre eles, Imre Nagy e Mátyás Rákosi, este segundo na condição de dirigente principal do país. Culto, inteligente, duro e extremamente leal a Moscou, o líder húngaro Rákosi era tão fiel a Stálin que, na festa de 70 anos do ditador, teve lugar garantido ao lado do aniversariante. Para o povo húngaro, esse culto stalinista rendeu perseguições, exílios, violações dos direitos humanos e fechamento do país para o resto do mundo. As húngaras, acostumadas a ter Viena e Paris como referências de moda, tiveram de se voltar para as soviéticas, cuja maneira de vestir estava estagnada havia três décadas. A polícia política vigiava, forjava provas e torturava qualquer cidadão suspeito de ser simpático a “reformas burguesas”. No total, estima-se que 600 mil húngaros foram condenados entre 1948 e 1953. A repressão era tão forte que, em 1951, o líder Rákosi mandou 21 dirigentes do próprio partido para a cadeia. A produção agrícola caiu e os preços subiram, jogando ainda mais para baixo a qualidade de vida de um país que tinha um enorme déficit habitacional (264 habitantes para cada 100 quartos disponíveis) e a proporção de um automóvel para cada 500 habitantes (enquanto na Inglaterra, por exemplo, essa taxa no período era um para dez). Até o embaixador soviético no país, J. Kiseljov, alertou seus compatriotas de que aquilo não ia acabar bem.
Em 1953, Josef Stálin morreu e, com ele, o culto ao seu poder. O enterro do stalinismo se deu definitivamente em fevereiro de 1956, durante o 20º Congresso do PC soviético, quando Nikita Kruchev fez seu histórico pronunciamento condenando os excessos do stalinismo, prometendo a recuperação dos valores da “democracia socialista”. Parecia a senha de que os países comunistas precisavam para construir um socialismo com cara própria. Em todo o bloco comunista, trabalhadores se sentiram encorajados a se manifestar, mas logo aprenderam que a tal democracia socialista não era assim tão democrática. Na Alemanha Oriental, por exemplo, uma manifestação de trabalhadores no dia 17 de junho de 1956 foi duramente reprimida, resultando na morte de 51 pessoas. Onze dias depois, foi a vez de os poloneses se manifestarem na cidade de Poznan, onde morreram 54 pessoas.
Em meio a esse clima de insatisfação, os soviéticos derrubaram o durão Rákosi do poder da Hungria e colocaram Ernö Gerö em seu lugar. Em 19 de outubro de 1956, encorajados por uma vitória do PC polonês frente ao comando soviético, os húngaros acreditaram que poderiam fazer o mesmo. Três dias depois, integrantes da juventude comunista montaram um grupo dissidente e marcaram para o dia seguinte uma manifestação em apoio aos poloneses. É o início da revolta. Mas, enquanto escritores e intelectuais lutavam por um modelo socialista adaptado à realidade húngara, os estudantes resolveram pedir mais: eleições multipartidárias, imprensa livre e retirada das tropas do Pacto de Varsóvia, organização militar do bloco comunista. No fim do dia 23 de outubro, a rebelião já havia reunido 200 mil pessoas. Na porta da Rádio Budapeste, o protesto pacífico virou uma batalha campal que se espalhou país adentro. Às 21h30, a estátua de Stálin foi derrubada. Às 23h, os manifestantes fizeram com que o dirigente do Partido Comunista Imre Nagy, considerado mais sensível às reivindicações do povo húngaro, fosse alçado ao posto de primeiro-ministro, apesar de Gerö permanecer como primeiro secretário do partido. A situação era confusa. Em 24 de outubro, foi anunciada, junto com a nova junta de poder, a proibição de reuniões públicas e a implantação do toque de recolher. Os rebeldes não obedeceram e tampouco a polícia reprimiu os manifestantes. Na verdade, o líder Imre Nagy ainda hesitava em apoiar os rebeldes. Em 28 de outubro, ele deu uma guinada em direção aos manifestantes: nomeou para o governo ministros não-comunistas e chamou o movimento de “do povo”, em contraponto a Moscou, que via os manifestantes como “fora-da-lei”. No dia 30, o multipartidarismo voltou à ordem política da Hungria. Mas o Exército Vermelho já estava alerta.
Apesar de negativas do embaixador russo, o exército de Moscou começou a ocupar o aeroporto de Budapeste alegando que precisava transportar os feridos da rebelião. Diante da ameaça soviética, Nagy enviou um pedido de apoio à Organização das Nações Unidas. Mas, para o azar dos húngaros, o pedido foi enviado no mesmo dia em que estourou a crise do Canal de Suez no Egito, cuja nacionalização fez com que ingleses e franceses traçassem planos de invadir o país. Se os países ocidentais podiam invadir uma nação árabe, como poderiam evitar que os soviéticos sufocassem uma rebelião na vizinhança?
Anos depois, documentos liberados pelo governo soviético revelaram que o Kremlin decidira pela intervenção militar no dia 31 de outubro. Enquanto Kruchev havia comunicado seus planos de invasão a outros líderes comunistas no dia 2 de novembro, Moscou continuava “negociando”, um dia depois, a retirada de suas tropas da Hungria. Quando o ministro da Defesa húngaro voltou a conversar com os militares russos sobre esse tema por volta das 22h do dia 3 de novembro, foi preso. Naquela madrugada, a chamada Operação Turbilhão entrou em ação e, antes do almoço, a Hungria estava dominada. O novo governo húngaro, apoiado pelos soviéticos, encontrou alguma resistência armada até meados de novembro, tendo que negociar com comitês e conselhos até dezembro de 1956. A partir daí, acabou a conversa e veio a repressão.
Em janeiro de 1957, os húngaros contabilizavam 2500 mortos e 20 mil feridos. Mas as cicatrizes foram expostas para todo o mundo, inclusive no Brasil (veja quadro na pág. ao lado). A fé no socialismo como projeto humanista estava abalada. Comunistas de carteirinha como o cantor francês Yves Montand e o escritor Jean-Paul Sartre condenaram a invasão. O historiador inglês Eric Hobsbawn assinou na ocasião, ao lado de outros renomados intelectuais, um manifesto de repúdio à invasão que o jornal do PC britânico se recusou a publicar. Era o início do fim.
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http://www.construindohistoriahoje.blogspot.com
Em 1989, quando o mundo assistiu pela TV à derrocada do comunismo no Leste Europeu, pouca gente se deu conta de que as manifestações contra o modelo soviético na região haviam começado a ser desenhadas num pequeno país do bloco, pouco mais de três décadas antes. O livro Hungria 1956 ...E o Muro Começa a Cair, de vários autores, narra como, há 50 anos, estudantes húngaros saíram às ruas de Budapeste para protestar contra a ditadura imposta pelos soviéticos na região. Em outubro e novembro de 1956, 200 mil pessoas se reuniram na maior demonstração de insatisfação de um país comunista diante da poderosa União Soviética. Mas o sonho de autonomia húngara iria durar apenas alguns dias. Na madrugada de 4 de novembro daquele ano, os manifestantes se viram impotentes diante da chegada dos tanques russos a Budapeste. Comunistas do mundo inteiro, que costumavam bradar contra o imperialismo americano, descobriram atônitos a face brutal de outro imperialismo: o soviético.
Para os húngaros, a chegada dos russos era apenas mais um capítulo da história de um país subjugado por invasores há séculos. Desde que Estêvão I estabeleceu o reino da Hungria, no ano 1000, o território fora dominado por mongóis e turcos otomanos e, mais tarde, pelos Habsburgos, da Áustria, quando integrou o chamado Império Austro-Húngaro. Derrotados e separados dos austríacos na Primeira Guerra, os húngaros foram obrigados, em 1920, a doar dois terços de seu território aos vizinhos. Depois de um malfadado ensaio de revolução comunista, o país terminou se aliando à Alemanha na Segunda Guerra na esperança de recuperar os territórios perdidos. Derrotados mais uma vez, a União Soviética logo fez questão de colocar o país em sua zona de influência, assim como fez com os outros países do Leste Europeu no pós-guerra.
No início, tudo parecia normal no país: a Hungria continuava permitindo o multipartidarismo e o Partido Comunista Húngaro mantinha apenas o controle do Ministério do Interior, o que significava, na prática, o controle do aparelho policial. Mas, a partir de 1947, as coisas esquentaram entre Estados Unidos e União Soviética e a Guerra Fria levou os comunistas a mudarem de postura: dali em diante, todos os países do leste teriam que rezar pela cartilha de Moscou.
Para comandar a Hungria, os soviéticos escalaram comunistas húngaros que haviam morado em Moscou. Entre eles, Imre Nagy e Mátyás Rákosi, este segundo na condição de dirigente principal do país. Culto, inteligente, duro e extremamente leal a Moscou, o líder húngaro Rákosi era tão fiel a Stálin que, na festa de 70 anos do ditador, teve lugar garantido ao lado do aniversariante. Para o povo húngaro, esse culto stalinista rendeu perseguições, exílios, violações dos direitos humanos e fechamento do país para o resto do mundo. As húngaras, acostumadas a ter Viena e Paris como referências de moda, tiveram de se voltar para as soviéticas, cuja maneira de vestir estava estagnada havia três décadas. A polícia política vigiava, forjava provas e torturava qualquer cidadão suspeito de ser simpático a “reformas burguesas”. No total, estima-se que 600 mil húngaros foram condenados entre 1948 e 1953. A repressão era tão forte que, em 1951, o líder Rákosi mandou 21 dirigentes do próprio partido para a cadeia. A produção agrícola caiu e os preços subiram, jogando ainda mais para baixo a qualidade de vida de um país que tinha um enorme déficit habitacional (264 habitantes para cada 100 quartos disponíveis) e a proporção de um automóvel para cada 500 habitantes (enquanto na Inglaterra, por exemplo, essa taxa no período era um para dez). Até o embaixador soviético no país, J. Kiseljov, alertou seus compatriotas de que aquilo não ia acabar bem.
Em 1953, Josef Stálin morreu e, com ele, o culto ao seu poder. O enterro do stalinismo se deu definitivamente em fevereiro de 1956, durante o 20º Congresso do PC soviético, quando Nikita Kruchev fez seu histórico pronunciamento condenando os excessos do stalinismo, prometendo a recuperação dos valores da “democracia socialista”. Parecia a senha de que os países comunistas precisavam para construir um socialismo com cara própria. Em todo o bloco comunista, trabalhadores se sentiram encorajados a se manifestar, mas logo aprenderam que a tal democracia socialista não era assim tão democrática. Na Alemanha Oriental, por exemplo, uma manifestação de trabalhadores no dia 17 de junho de 1956 foi duramente reprimida, resultando na morte de 51 pessoas. Onze dias depois, foi a vez de os poloneses se manifestarem na cidade de Poznan, onde morreram 54 pessoas.
Em meio a esse clima de insatisfação, os soviéticos derrubaram o durão Rákosi do poder da Hungria e colocaram Ernö Gerö em seu lugar. Em 19 de outubro de 1956, encorajados por uma vitória do PC polonês frente ao comando soviético, os húngaros acreditaram que poderiam fazer o mesmo. Três dias depois, integrantes da juventude comunista montaram um grupo dissidente e marcaram para o dia seguinte uma manifestação em apoio aos poloneses. É o início da revolta. Mas, enquanto escritores e intelectuais lutavam por um modelo socialista adaptado à realidade húngara, os estudantes resolveram pedir mais: eleições multipartidárias, imprensa livre e retirada das tropas do Pacto de Varsóvia, organização militar do bloco comunista. No fim do dia 23 de outubro, a rebelião já havia reunido 200 mil pessoas. Na porta da Rádio Budapeste, o protesto pacífico virou uma batalha campal que se espalhou país adentro. Às 21h30, a estátua de Stálin foi derrubada. Às 23h, os manifestantes fizeram com que o dirigente do Partido Comunista Imre Nagy, considerado mais sensível às reivindicações do povo húngaro, fosse alçado ao posto de primeiro-ministro, apesar de Gerö permanecer como primeiro secretário do partido. A situação era confusa. Em 24 de outubro, foi anunciada, junto com a nova junta de poder, a proibição de reuniões públicas e a implantação do toque de recolher. Os rebeldes não obedeceram e tampouco a polícia reprimiu os manifestantes. Na verdade, o líder Imre Nagy ainda hesitava em apoiar os rebeldes. Em 28 de outubro, ele deu uma guinada em direção aos manifestantes: nomeou para o governo ministros não-comunistas e chamou o movimento de “do povo”, em contraponto a Moscou, que via os manifestantes como “fora-da-lei”. No dia 30, o multipartidarismo voltou à ordem política da Hungria. Mas o Exército Vermelho já estava alerta.
Apesar de negativas do embaixador russo, o exército de Moscou começou a ocupar o aeroporto de Budapeste alegando que precisava transportar os feridos da rebelião. Diante da ameaça soviética, Nagy enviou um pedido de apoio à Organização das Nações Unidas. Mas, para o azar dos húngaros, o pedido foi enviado no mesmo dia em que estourou a crise do Canal de Suez no Egito, cuja nacionalização fez com que ingleses e franceses traçassem planos de invadir o país. Se os países ocidentais podiam invadir uma nação árabe, como poderiam evitar que os soviéticos sufocassem uma rebelião na vizinhança?
Anos depois, documentos liberados pelo governo soviético revelaram que o Kremlin decidira pela intervenção militar no dia 31 de outubro. Enquanto Kruchev havia comunicado seus planos de invasão a outros líderes comunistas no dia 2 de novembro, Moscou continuava “negociando”, um dia depois, a retirada de suas tropas da Hungria. Quando o ministro da Defesa húngaro voltou a conversar com os militares russos sobre esse tema por volta das 22h do dia 3 de novembro, foi preso. Naquela madrugada, a chamada Operação Turbilhão entrou em ação e, antes do almoço, a Hungria estava dominada. O novo governo húngaro, apoiado pelos soviéticos, encontrou alguma resistência armada até meados de novembro, tendo que negociar com comitês e conselhos até dezembro de 1956. A partir daí, acabou a conversa e veio a repressão.
Em janeiro de 1957, os húngaros contabilizavam 2500 mortos e 20 mil feridos. Mas as cicatrizes foram expostas para todo o mundo, inclusive no Brasil (veja quadro na pág. ao lado). A fé no socialismo como projeto humanista estava abalada. Comunistas de carteirinha como o cantor francês Yves Montand e o escritor Jean-Paul Sartre condenaram a invasão. O historiador inglês Eric Hobsbawn assinou na ocasião, ao lado de outros renomados intelectuais, um manifesto de repúdio à invasão que o jornal do PC britânico se recusou a publicar. Era o início do fim.
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