O Muro de Berlim, erigido em agosto de 1961, era o muro da crueldade e
da vergonha. O estigma de um império que só conseguia sobreviver
protegendo-se com muros e metralhadoras. Sua queda foi o anúncio da
liberdade.
A foto da barreira sendo alegremente desmantelada completa a rica
heráldica do século 20: as guerras de 1914 e 1939, Hitler numa
cervejaria em Munique, Lenin dançando na neve em 1917, Gandhi com os pés
nus diante de soldados ingleses. Cada um desses ícones integra uma
constelação de imagens. O dia 9 de novembro de 1989 não fugiu à regra: o
concerto de Mtislav Rostropovich enquanto os berlinenses demoliam o
Muro com picaretas e martelos no Portão de Brandemburgo.
Como ocorreu nas grandes rupturas da História, estalidos já
anunciavam a agonia do grande corpo doente. Em 1980, na Polônia, as
greves de Gdanski e o surgimento de um sindicato livre, o Solidariedade,
e do líder Lech Walesa, abriam uma brecha na casamata. Na Hungria, a
Cortina de Ferro se rompe em pedaços em 19 de agosto de 1989. Nesse dia,
diante das câmeras, os chanceleres da Hungria e da Áustria cortaram a
cerca de arame farpado que separava os dois países, permitindo a entrada
na Áustria de uma maré de alemães orientais que se agrupavam na
Hungria.
Semanas antes, o líder soviético Mikhail Gorbachev, o homem da
perestroika, em visita a Berlim Oriental, foi acolhido por jovens que
gritavam: "Faça o amor e não muros." Um mês antes da queda do Muro, 70
mil pessoas se juntaram diante da Igreja de São Nicolau, na cidade de
Leipzig, para vaiar o Partido Comunista alemão oriental.
E, então, chegava ao fim o longo capítulo iniciado em outubro de 1917
por Lenin, Trotski e o Cruzador Aurora, em São Petersburgo. Em poucas
semanas, enquanto a União Soviética ainda prosseguia na sua trajetória
já meio zonza (como o pato cujo pescoço é cortado, mas continua a andar
jorrando sangue), todas as colônias do império começam a se libertar.
Nós, na Europa, não entendíamos mais nada. Um Estado construído para
durar mil anos se desfazia como uma boneca de pano. Além disso, tínhamos
esquecido a geografia do continente. Descobrimos que rios, que nunca
ouvimos falar, não tinham deixado de correr.
Fui à biblioteca empoeirada do meu avô em busca dos velhos livros de
escola de antes da guerra de 1914. E então recoloquei a Moldávia no seu
lugar. Descobri que havia duas Ossétias, uma do Norte e outra do Sul.
Toda uma geografia submersa voltava à superfície como um reflexo que sai
do fundo cintilante de um lago. Uma Europa fantasma surgia do nada,
retomava o seu lugar, preenchia a enorme rachadura que o belo dia de 9
de novembro de 1989 tinha aberto na História do século 20.
Em menos de dois anos, as 15 repúblicas da União Soviética
proclamaram sua soberania e depois, com exceção da Rússia e do
Casaquistão, a independência. Duas avançaram muito rápido, antes mesmo
do golpe de Estado abortado de agosto de 1991 - a Geórgia (abril de
1990) e a Lituânia (março de 1990). As outras seguiram o exemplo.
As "democracias populares", os países da Europa Oriental que, após a
2ª Guerra, caíram pela força, crime ou trapaças na esfera de influência
de Moscou, aproveitaram a ocasião. Em Praga, a "Revolução de Veludo", em
17 de novembro de 1989, pôs fim ao comunismo. Na Bulgária, o stalinista
Todor Zhikov foi substituído por um comunista mais aberto, Petar
Mladenov. Na Romênia, o tirano Nicolau Ceausescu foi derrubado em
dezembro de 1989 por um movimento popular. Ele fugiu, mas foi capturado,
julgado sumariamente, e executado como um cachorro, com sua mulher.
Restava a Alemanha Oriental. Seu estado de deterioração era tal que o
então chanceler alemão ocidental, Helmut Kohl, decidiu reunificar as
duas Alemanhas - ideia que não agradava muitos dirigentes ocidentais, em
especial os dos Estados europeus, cujo lema era: "A reunificação:
pensar nela, sempre; falar dela, jamais." O então presidente francês,
François Mitterrand, chegou a afirmar: "Amo tanto a Alemanha que prefiro
que existam duas delas." Mas Kohl insistiu e obteve um acordo de
Gorbachev, em troca de concessões à URSS.
Foi o fim do império comunista, ou soviético, no Leste Europeu. A
Europa mutilada, dilacerada, de 1950, voltou a se reagrupar e estava
livre.
O comunismo não desapareceu em todo o planeta. Em cinco países, o
partido único ainda leva o nome de "comunista" ou faz referência ao
comunismo. Entre eles, o PC da China, onde as reformas que foram
realizadas, sem renegar o comunismo, poderiam portar o lema que resume
toda a pobre filosofia das sociedades burguesas livres: "Enriqueçam."
Alguns outros países mantêm intacta a teoria e a prática marxistas, como
a Coreia do Norte e Cuba.
Em compensação, é preciso reconhecer que, 20 anos depois da
debandada, o comunismo e mesmo a União Soviética recuperaram senão a
força, pelo menos uma certa atração. E essa atração é explicada, de um
lado, por um sentimento intrínseco da natureza humana: a nostalgia. Cada
um de nós ama o que foi o seu passado, mesmo que tenha sido sombrio ou
triste. De outro lado, essa atração se explica pela imagem com
frequência fútil, corrompida e imoral que se tornou a figura do
Ocidente.
É na antiga União Soviética que esses ventos nostálgicos sopram com
mais constância. Por duas razões: em primeiro lugar, a Rússia não se
conforma de ter perdido tantos territórios e ser apenas um simples peão
no jogo de xadrez mundial, e não mais uma "das duas superpotências". De
outro lado, Vladimir Putin, obcecado pelo império morto, não faz nada
para desestimular essas nostalgias. "O fim da URSS foi a maior
catástrofe histórica do século 20", disse Putin.
Curiosamente, essa nostalgia também é observada no Ocidente. O
comunismo stalinista é rejeitado pela maioria, mas o homem que dominou a
ideologia comunista e as ações de Lenin, Trotski, Stalin ou Mao
Tsé-tung - o alemão Karl Marx - está tendo um retorno assombroso.
O fim da URSS contribuiu vigorosamente para esse estranho
"ressurgimento" de Marx. Caído em desgraça quando a URSS passou a
cometer seus crimes, fazer suas asneiras, Marx hoje reencontra sua
virgindade, e a sua filosofia - como suas lições de economia - brilha
intensamente. Os erros, para não dizer as vilanias, os crimes cometidos
pelas sociedades liberais, banqueiras e cínicas do Ocidente colaboram
para esse ressurgimento de Marx.
Mas o comunismo, que foi sinônimo - como todas as tiranias - de muro,
prisão, silêncio, censura, crueldade, está sob todos os aspectos
condenado pelo simples movimento da ciência. Um mundo dominado pela
internet com certeza tem seus graves inconvenientes. Mas pelo menos é um
mundo onde os muros e as barreiras entre países e cérebros estão
destinados a desaparecer. Mesmo o Irã e a China comunista acabarão
percebendo isso. A internet anuncia, talvez, o fim dos muros.
*Gilles Lapouge é correspondente em Paris
Você quer saber mais?